Em “Dois Tratados Sobre o Governo Civil”, no século XVII, John Locke enunciava as bases do que seria a doutrina política da separação de funções. Referia-se ele aos poderes legislativo e executivo, e, dentro deste último, uma função judiciária, por ele chamada de função federativa.
Como se vê, para Locke tínhamos apenas dois poderes.
Mais tarde, na França do século XVIII, o Barão de Secondat, conhecido como Montesquieu, escreveria com bastante afinco a monumental obra “O Espirito das Leis”. É um verdadeiro observatório da política e do poder à época.
Montesquieu narra o poder como exercido em Roma: a discussão das leis nos senados, o exercício da função executiva, quase confundida com a arte de comandar aquele império e as invasões e, por fim, a função de julgar, distribuída a juízes e magistrados nomeados por cônsules e pelo próprio Senado.
De sua obra, destacamos uma fundamental conclusão pelo mestre apresentada: “Pode acontecer que a constituição seja livre e que o cidadão não o seja. O cidadão poderá ser livre e a constituição não o será. Nestes casos, a constituição será livre de direito, e não de fato; o cidadão será livre de fato, e não de direito”.
No apogeu do constitucionalismo o movimento expunha que ter a previsão de direitos e garantias fundamentais em um documento de estatura superior, condensando os limites de atuação dos poderes, seria a chave da democracia moderna.
A realidade, todavia, mostrou a possibilidade de que ao lado e acima da Constituição surgissem forças políticas capazes de torná-la mais um texto legal, obsoleto e ignorado.
Desde o Império o Brasil conta com Constituições, que não foram capazes de separar o sistema ditatorial e as forças militares. A Alemanha contava com o texto de Weimar ainda sob o Reich de Hitler até a promulgação da Lei Fundamental de Bonn.
Um órgão elevou (e revelou) sua importância nesse conflito entre os poderes: A Corte Suprema.
Talvez a história de atuação das Cortes Supremas tenha se iniciado no memorável julgamento Marbury vs. Madison, no qual o Relator Chief Justice Marshall, em 1803, pregou a supremacia da Constituição em face do poder legislativo estadunidense.
Além de originar o controle de constitucionalidade das leis, este julgamento significou a imposição de barreira entre as garantias do cidadão e a atuação dos poderes.
A Corte Suprema tornou-se a fronteira última entre o sistema político, o sistema econômico, o sistema militar, de um lado, e, de outro, o cidadão e o interesse público.
Antoine Garapon obtempera que “a sociedade democrática é uma sociedade que assenta numa renúncia secreta à unidade, numa legitimação surda do confronto dos seus membros e no abandono tácito da esperança de unanimidade política”.
A desuniformidade dos poderes é realidade hoje na convivência desarmônica dos poderes. Vemos em Brasil o conflito praticamente diário entre os interesses de classes do povo, imbricando-se dentro do Congresso, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal.
Conforme registra Cezar Saldanha, “o Tribunal Constitucional é ao mesmo tempo causa e consequência do diálogo entre o direito constitucional e os valores éticos do convívio sócio-político”.
Hoje em dia é indiscutível que a Corte Suprema exerce papel político. Controla e direciona a atuação do Legislativo, regula a execução das administrativas e supre a deficiência voluntária ou corrupta do Executivo.
A presença da Corte Constitucional exige “o fim do executivismo, com a tripartição sendo substituída, pelo menos, por uma tetrapartição dos poderes, caracterizando novo sistema de governo”.
Assim, são vãs as tentativas do Legislativo brasileiro em coagir ou mitigar a legitimidade da Corte Suprema, porque a capacidade desta se assenta no poder que lhe outorgou o próprio povo.
Quando o cidadão das ruas precisa de remédio, de segurança contra as exações fiscais abusivas, contra aumentos de tarifas, é a Corte Suprema que se pronuncia, não por mera opção, mas, porque foi tomado como guardião da esperança da democracia.
Referências:
MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 187.
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas. Lisboa: Piaget, 1996.
SALDANHA, Cezar. O Tribunal Constitucional como Poder. Memória Jurídica: São Paulo, 2002, p. 127.