sexta-feira,29 março 2024
ColunaDireito InternacionalA crise da Democracia brasileira e as repercussões internacionais do impeachment

A crise da Democracia brasileira e as repercussões internacionais do impeachment

crise brasileira

Caros leitores,

Na coluna desta semana, me permito algum distanciamento de considerações propedêuticas próprias do Direito Internacional para a realização de algumas reflexões sobre o atual momento da crise brasileira, que em muito reflete a falência de um modelo de democracia gestado há menos de três décadas. Faço essas considerações, evidentemente, à luz da repercussão internacional sobre o assunto.

Não podemos dizer que a Democracia esteja gozando de ótima saúde, haja vista que problemas desencadeados mundo à fora, em Estados que dizem viver a plenitude deste regime, deflagram notória violação a direitos humanos e liberdades públicas, fundamentos caros que alicerçam os regimes democráticos.

Diria BOBBIO[1], sinteticamente, que as transformações da democracia ao longo do tempo se deram na forma de “promessas não cumpridas” ou no contraste entre a democracia ideal, tal como concebida por seus pais fundadores, e a democracia real, onde com maior ou menor participação devemos conviver cotidianamente. Bem é verdade que algumas dessas promessas eram, desde o início, meras ilusões, e outras apenas esperanças mal respondidas.

Alguns fatores que se constituem como obstáculos práticos ao sucesso da democracia merecem destaque, quis sejam: (I) a sobrevivência de um poder invisível que não haure do povo sua legitimidade; (II) a permanência de oligarquias estamentais; (III) a substituição da finalidade pública (dos interesses da sociedade) para fazer prevalecer o revanchismo e a representação do interesse de classes; e, finalmente, (IV) a carência da educação em populações que, em sua maioria, e mormente nos países subdesenvolvidos, não conseguem traduzir a relevância dos problemas da sociedade em que se inserem através do horizonte de seus conhecimentos.

Ao que me parece, a dinâmica da democracia não consegue se adaptar ao tempo líquido[2] em que se encontra a sociedade, de modo que as relações e as demandas sociais avançam em maior velocidade, criando um descompasso entre as instituições da democracia e sua capacidade em oferecer respostas condizentes com o anseio social.

Pois bem, e como o Brasil se insere no contexto da crise democrática? Em diversos aspectos, evidentemente. Porém, aqui me restrinjo ao objeto do impeachment da então afastada Presidente da República, que reúne discursos favoráveis e contra seu afastamento, dividindo a sociedade entre concepções políticas, ideológicas e também jurídicas. Não é minha intenção emitir juízos de valor sobre a adequação do procedimento, pois há muito para se discordar e concordar em ambos os lados do argumento, mas atenho o enfoque em discorrer sobre o plano de fundo dessa situação – a crise democrática.

Nas lições de Cass R. Sunstein[3], o impeachment é um instrumento de uso raro, embora previsto nas Constituições sob essa ou outra forma de destituição dos altos cargos do poder. Em democracias como a Inglaterra e os Estados Unidos, acaba sendo um instrumento irrelevante para toda a vida constitucional. Sua importância reside parcialmente na existência de um sistema de freios e contrapesos inserido na lógica da separação dos poderes estatais, e completa-se pela alta carga de lições sobre o relacionamento entre o constitucionalismo, democracia e sociedade. A lógica do instrumento é permitir a destituição dos altos postos do poder quando supridas determinadas condicionantes, evitando-se assim a contaminação do processo de impedimento por meras paixões políticas. Em outras palavras: a garantia jurídica legitima a persecução política.

No Brasil, o processo de impeachment transcorreu imputando à Presidente da República dois supostos crimes de responsabilidade, que a levaram ao afastamento pela configuração de suficientes indícios de autoria e materialidade, quais sejam: (a) ter expedido decretos de abertura de créditos suplementares sem autorização do Congresso Nacional, em circunstâncias que a Lei não lhe permitiria; e (b) ter realizado operações de crédito com bancos controlados pela União.

Ocorre que,

em qualquer esforço de impedimento do Presidente, é muito provável que se trate de um caso para se estudar a polarização de grupos. É comum que pessoas com um mesmo ponto de vista passem a dialogar uns com os outros, e se aqueles com concepções opostas também fortificarem seus argumentos, é provável que ambos se polarizem, fazendo suas concepções crescentemente extremas. (tradução livre)[4]

A discussão jurídico-política reside exatamente na configuração (ou não) desses crimes, de modo que grupos contrários e favoráveis ao impedimento acirram a divisão social em torno de um assunto demasiado importante para a vida da nação, onde seria necessário a manutenção constante do diálogo entre as divergências, preceito fundamental nas democracias. No plano institucional, ainda é possível verificar alguma tentativa de argumentação e contra-argumentação, mas no bojo da sociedade carecemos de ambiente propício a esse tipo de sistemática dialógica, o que acaba contribuindo para o aprofundamento da crise democrática.

A questão se torna ainda mais delicada quando se percebe que o Poder Legislativo, a quem compete na ordem jurídica brasileira processar e julgar o Presidente por crimes de responsabilidade, é composto por uma oligarquia política mergulhada em corrupção. Não é de se assustar que o afastamento de uma Presidente não traga mudanças no cenário político e nas perspectivas do país a longo prazo, haja vista que não há uma renovação do poder, mas apenas uma renovação das oligarquias que tomam posse, para exercê-lo em seu próprio benefício.[5]

Não é sem motivo que alguns editoriais internacionais destacam a simbologia por trás de um processo de impeachment levado a efeito por um parlamento profundamente envolvido em corrupção. Vejamos o que afirmou o The Guardian:

Suas próprias falhas [da Presidente], que até mesmo seus defensores admitem serem substanciais, contribuíram para sua queda. Mas o que está claro é que não apenas sua carreira está destruída, mas o sistema democrático brasileiro como um todo. […] Os erros e acertos do caso contra a Presidente será debatido no Senado, agindo como um tribunal. Não se trata de nenhuma acusação de corrupção [a ela imputados], enquanto que um número considerável dos que votaram pelo impeachment, já foram denunciados ou estão sendo investigados por corrupção. A ironia é fácil de ver, quando muitos dos acusadores são eles próprios acusados, e de pecados piores. […] Quem deve ser julgado e quem não deve é uma questão importante. Mas o que deveria estar em julgamento, acima de tudo, é o fracassado modelo político brasileiro. (tradução livre)[6]

Já a The Economist, crítica assídua da gestão feita pela Presidente afastada ao longo de seu mandato, publicou um editorial no dia 14 de Maio[7] afirmando que seu sucessor, embora tivesse “melhores ideias”, não teria garantia de ser um presidente bem sucedido.

Especificamente no contexto brasileiro, em tempos de crise da democracia agravada por um sistema político em falência, devemos ter em mente que mudanças verdadeiras e profundas transcendem a deposição de um Presidente. Várias medidas devem ser tomadas, que vão desde a abordagem de novas posturas institucionais, adequadas aos princípios republicano e democrático, até o aumento efetivo da escolarização com qualidade.

Não há soluções fáceis em conjunturas complexas. A oportunidade gerada pela crise é uma abertura para que nossas angústias não se restrinjam a documentar para a posteridade os problemas de nossa cultura decadente.

Precisamos que esses problemas sejam resolvidos no presente. Há um mundo que nos aguarda. E o primeiro passo, quem sabe, é entender que o problema está nos altos escalões do poder e, ao mesmo tempo, em nós mesmos. A democracia, no mundo, está doente. E precisamos da cura, pois não sabemos o que pôr em seu lugar.


Referências:

[1] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 6ª edição, Rio de Janeiro, ed. Paz e Terra: 1986. Pág. 07-11.

[2] Sobre o conceito tratado em: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed 2001.

[3] SUNSTEIN, Cass. Designing democracy: What Constitutions do. New York, Oxford University Press: 2001. Pág. 115-116.

[4] Op. cit., mesma página.

[5] Referências em: GOMES, Luiz Flávio. Novo governo leva a novas oligarquias (a lei de ferro das democracias). Crise de identidade e salvadores da pátria. Disponível em: http://luizflaviogomes.com/novo-governo-leva-novas-oligarquias-lei-de-ferro-das-democracias-crise-de-identidade-e-salvadores-da-patria/, acesso em 22/05/2016.

[6] TheGuardian (online version). The Guardian view on Dilma Rousseff’s impeachment: the political system should be on trial, not one woman. Disponível em: http://www.theguardian.com/commentisfree/2016/may/12/the-guardian-view-on-dilma-rousseffs-impeachment-the-political-system-should-be-on-trial-not-one-woman, acesso em: 21/05/2016

[7] The Economist (online version). An unplanned presidency. Disponível em: http://www.economist.com/news/americas/21698719-michel-temer-has-better-ideas-dilma-rousseff-does-not-mean-he-will-be-successful?zid=309&ah=80dcf288b8561b012f603b9fd9577f0e, acesso em: 21/05/2016.

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